terça-feira, 30 de dezembro de 2008

2008

Há uns tempos, a braços com o conflito de se ser actor somente enquanto se actua (ou representa, ou se mostra algo a um público, etc.) e estar a dar mais aulas que apresentações, o autor deste blog decidiu dar o pontapé de saída.

Vindo de um trabalho (ou projecto, ou iniciativa, etc.) que estava destinado ao desconhecimento geral, chamado "Conto de Comboio", de leitura de textos em viagens de comboios e metros, percebi que

"(...) se consigo fazer teatro no meio de carruagens que transportam pessoas para as profundezas dos túneis da indiferença e consigo criar momentos de beleza, importando-me com o que se passa e com as leituras como diálogo; se consegui aprender por mim a criar um momento em que a leitura pudesse acontecer e não ser uma emissão de magnetofone, indiferentemente emitida e mais indiferentemente recebida; se consegui sobreviver a condições a que nenhum cantor ou outro profissional da voz se exporia; se consegui o que consegui - vencer o desprezo, vencer agarrando-me às palavras, ao valor dos textos, tão próximos das pessoas, às frases com predicados tão longínquos como Lobo Antunes, ou com agrura como o Torga (tão próximos das pessoas); se o consegui, posso dizer-te que conseguirei pegar em outras fotocópias e com a minha voz ir pelas frases fora até ao coração das pessoas, pois esse, sabe que esse só pode ser o objectivo de um artista."
(in Notas
sobre viagens, citações e circunstâncias, inédito)


Depois, ou entretanto, foi escolher que leitura fazer para me levar a fazer teatro. Um autor surgia óbvio e apetecível mais que tudo - imperativo: Fernando Pessoa.

(Imagem gentilmente criada por Ana Teresa Fernandes)

E pode dizer-se que Pessoa foi, nestes tempos, para mim - além de um farol - um ensinamento. De fingimento tão verdadeiro, tão sensível e humano, tão abrangente e pormenorizado como nenhuma outra circunstância poderia dar ou ter.

Só assim foi possível dar o salto, dando vários saltinhos de cada vez, tímidos, espaçados. Indo pela poesia como quem ia por palavras que fossem suas, que falassem de si e não de outro, que falassem a outro.

- Houvesse um coração do outro lado a responder, pelo silêncio (tenso as mais das vezes) a este coração que se libertava pela palavra. Fingindo, fingindo serem fingidos dores e amores e lembranças e espaços e pensamentos.

Isto foi acontecendo, como é claro. E não foi senão acidentado. Bati a portas e estas como portas ficaram: surdas. Palavras pedem leituras e leituras pedem livros. Bati à porta de sítios com livros. Eu gosto e eles também, pensava. E pensava ingenuamente que era assim que se construíam oportunidades. Vários sítios com livros olharam-me com desconfiança - apesar de bem credenciado, note-se - e foram-me trocando as voltas, como numa dança de roda.

Uma conhecida livraria do Porto pediu-me que aguardasse. Até hoje. Uma outra, de Braga, aceitou-me como se aceita não um convidado mas um parente que tosse muito num jantar de mostrar as pratas.

Associações Recreativas (numa tentativa de recriar percurso de Mário Viegas e outros) aceitou-me uma. Nessa, Tuna Musical de Santa Marinha, a amizade insuspeita de Fernando Peixoto (entretanto desaparecido) fez por mim o que eu queria por mim fazer: um pontapé para a frente.

Outra porta - importante porta - se abriu numa antiga peixaria convertida em livraria (com um sedutor horário nocturno, enredando qualquer um que por lá passasse em passeio higiénico de pós-jantar): Gato Vadio. Eu queria, eles queriam. Uma relação nasceu. No meio dos livros, diziam-se palavras. Nada fazia mais sentido. Por este blog abaixo há cartazes (de Maja Marek) como fotografias dessa relação. Na praia, ao sol, no cinema. Ou com Caeiro, com Marcial, com Ginsberg. E sempre com Júlio Gomes em sussurros de Que sessão vamos fazer a seguir?

E veio depois José Amaro Dioníso e Fátima Maldonado, e foi uma honra.

Entretanto, os corações que ouviam não ouviam calados, uns disseram-me coisas, outros deram-me coisas. Conversámos de coisas.

Devo a uns a ideia de uma poética, a outros novas coisas.

Devo a muitos, neste ano, amizade. E a um olhar fotográfico devo uma palavra amiga, também. Que me levou de volta ao Pessoa, na única comemoração digna dos 120 anos nesta que é a segunda cidade do país.



Nova relação nascia aqui, em torno do que importava: os livros. Os livros e aquela coisa tão invisível como a arte, que poderíamos traduzir por vibração dos corações, tão diferente do tilintar das moedas que, desde Judas, não deixam de ser - nas relações e no amor - sinónimo de traição.

Dina e Poetria. Uma e mesma coisa, que é também o entusiasmo pela poesia, a comoção em torno de poemas e poetas, que é o mesmo que dizer uma livraria tão pequena quanto grande é o que tem: poesia e teatro. E poesia e teatro fizeram-se nestas sessões Poesia In Progress (Dina Ferreira e César Augusto).

Figura de proa: José Carlos Tinoco, jazzista da palavra de texto & música. Ou blues, ou rock. Nem sei, mas um irmão da música e palavra. Inspirador.

Depois disto, um começo pedia-se:



Uma conjugação de esforços e um monólogo, concretizando o que vinha sendo aunciado, como a estrela aos Reis: que a poesia é expressão de um indívíduo, e que - pelo menos a de Pessoa - é fértil de aspectos dramáticos e de figimento (e espaços, e emoções e tudo) e espera só ser dito/feito.

Um monólogo, enfim, assumido como tal, depois de o fazer durante quase um ano, depois de tanta preparação, depois de tantos outros poemas-monólogos de tantos outros poetas.

Depois, portanto, de encarar os poemas como monólogos, fazer um monólogo de poema.

Duas pessoas - fora do círculo familiar - foram indispensáveis: Ana Saltão e Rui Oliveira. Contagiarte, portanto. Abria-se uma outra porta. A porta do teatro.

Um nervoso e um alívio por abrir essa porta, outra vez. É como chegar a casa, trôpego e desarrumado de estar fora, mas é chegar a casa.

Com tantas portas abertas este ano, tenho a dizer Obrigado. Obrigado por me ajudarem a chegar a casa. Eu a merecerei.

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